#5 Abacates e maracujás
Numa aventura deste calibre é natural o foco ser o conforto dos filhos a todos os níveis.
De vez em quando quando me desfoco lembro-me que isto tudo começou pelo facto de ter vindo para aqui trabalhar! E quando me lembro disso é também um misto de excitação e borboletas no meu estômago, pois faço listas de afazeres diariamente, e é raro eliminar todos os pontos.
Penso que os meus filhos devem estar convencidos que eu não faço nada mesmo, além de ser mãe Uber bike, ter tradutor integrado, e ser eu própria um audiobook ambulante.
Lemos 1 livro por semana, e no final da semana a Mercedes tem de escrever o que lhe parece ser a ideia principal do autor, o que gostou, o que não percebeu e o que se relaciona ou não com a sua vida. Escrito, filmado e enviado para a prof. à 5ª feira à noite. Na 6ª volta a começar com livro novo.
Parece-me bem, mas confesso que torço sempre para que escolha livros fáceis. E fininhos. Não me orgulho disso, mas quem diz a verdade...
Digo lemos porque, depois do jantar, é a actividade principal cá em casa: a Mercedes ouve-me tipo audiobook e interrompe quando não percebe, seguindo as palavras que estou a ler; a Maria põe os phones e ouve a Anne Frank enquanto segue o que está escrito de forma autónoma (benzádeus!); e o Matias fica atento uns minutos aos livros da irmã Cuca. Depois do sprint da Mercedes terminamos ora eu, ora o Rodrigo, se o sprint Mercedes é mais longo, com um a história com bonecos desenhados para o Matias que se farta de ver tanto escrito, e exige desenhos... e por isso bebo imensa água, e chego às 20h da noite com o corpinho todo moído entre a função de transportadora de crianças na melhor bike que já tive até hoje, as tarefas normais de pais (garantir que a familia está devidamente alimentada, limpa, e a viver num ambiente agradável, sem uma Elinir por perto (ai que saudades!), ser audiobook com traductor integrado, e ter um trabalho fora de casa um tanto exigente.
Passo a explicar. Uma das intenções destas experiências é exactamente experimentar as diferenças, e crescer... e a nível profissional há muitas diferenças.
A primeira é a dimensão do campus. São mais de 50k alunos. Eu dou aulas aos alunos do 2º ano, e colaboro em recolhas com os alunos de 3º ano.
Para ser fisioterapeuta há uma formação base de 4 anos (com unidades curriculares diversas e algumas mais específicas como anatomia, fisiologia, patologia, etc), que dá acesso a uma série de profissões futuras na área da saúde. E depois mais 3 anos de formação avançada para ser Doctor in Physical Therapy, depois de passarem um exame nacional. Então os meus alunos são do 6º e 7º ano de formação superior. Ou seja, já sabem muito! E ainda bem!, mas também me exigem outro nível de preparação quando temos encontros marcados. Apesar de não ser a primeira vez que dou aulas, ainda me acelero com as borboletas.
Outra das diferenças é a quantidade de horas de trabalho autónomo que têm. Preparam-se (com horas previstas de trabalho, documentos a consultar e questões que lhes orientam o estudo e que lhes mandamos na semana anterior) para vir ter aulas connosco. Isto é o modelo que vivi em Erasmus enquanto aluna na Holanda. Mas nessa altura não tinha a perspectiva de preparação de um professor para estas aulas. É que as discussões dos temas abordados são tudo menos superficiais. E às vezes tenho a sensação de estar a discutir temas já com colegas que fazem perguntas interessantes.
Acabo feliz, sempre. Ainda não me aconteceu acabar um encontro com alunos a achar que lhes prestei um mau serviço, nem um serviço mais ou menos. Tenho vindo toda contente para casa, até subir na minha super bike e ir buscar as crianças fresca e fofa (not!) para o segundo turno do dia.
Quando não são alunos, são reuniões e recolhas de dados.
As reuniões estão previstas em calendário, ou seja, são em horários que não interferem com a vida familiar depois das 15h. Top!
Têm agenda, e duração, respeitada à risca. Também vivi isto na Holanda, mas custa-me admitir que não tanto em Portugal ou Espanha. E não me parece que fosse complicado instalar este sistema em Lisboa, mas até hoje, simplesmente não foi minha realidade.
Recolhas de dados... além de tudo o que está disponível no lab, o que é novo para mim, é que está super organizado, e funciona. Tudo funciona, e bem!!!
Os lab techs são os meus favoritos do campus, se alguma coisa não corre como previsto eles resolvem. Num dos labs onde fazemos recolhas com marcha e corrida, um dos sensores de EMG enfiou-se dentro da caixa da plataforma instrumentada. Eu - em pânico... e agora? de rabo para o ar e a pensar, ai o raio do sensor com tanto sitio para cair, logo foi enfiar-se na frincha mais inacessível. Percebo que sou a única de rabo para o ar, e vejo a Jenny pegar no tlm e chamar um dos meus favoritos.
Basicamente teve de desmanchar o chão falso para sacar o sensor. Mas aguardou que terminássemos a recolha com outro equipamento, e nos pirássemos para afazeres mais importantes. A minha participação neste processo? Zero. Agradeci, várias vezes, claro.
E dei comigo a lembrar-me do dia em que entrei nas instalações do sitio onde supostamente nos iriam "deixar" montar um sistema parecido, e que numa noite de chuva inundou. E que até ter vindo para aqui tentei encontrar e apresentei várias soluções para pôr a funcionar o nosso ferrarri guardado numa despensa. E de resposta só me foram apresentados problemas. Alguns deles que... talvez seja melhor não deixar escrito. E também me lembrei que nessa altura pensei várias vezes que sou feliz de volta dos meus abacates, e dos maracujás. Mas fiquei contente por sentir de novo as borboletas de ideias possívies de concretizar... E acelerei-me a pensar no retro-choque da desadaptação de um sítio onde o meu tempo é valorizado e respeitado como nunca, e a minha opinião conta, e é solicitada continuamente... E quando proponho alguma coisa fora da caixa, o foco não são os problemas, mas as soluções... E acalmei-me a pensar que se o retro-choque for demasiado duro de gerir, tenho sempre os meus maracujás e os abacates que me fazem feliz. Até lá espero absorver tudo, aprender tudo, aproveitar tudo, e oxalá, levar tudo o que são prós de volta para o meu cantinho.
Em relação a contras... tive na semana passada a pergunta da Mercedes, "mamã, como é um active shooter?... mas eu achei que não tinha percebido, um active shooter pode ser parecido com uma pessoa?... " Glup.
Tiveram simulacros na escola. De incêndio, terramoto e active shooting, e vieram as duas com imensas perguntas para casa.
Respondemos que para tudo na vida é melhor estar preparado, do que não estar preparado. Mas fui deitar-me com a cabeça a mil. Ontem, tive eu própria simulacro no Campus com a policia do próprio Campus. Resumo: RUN. HIDE. FIGHT. Não há escolhas certas e erradas numa situação deste tipo. Tudo menos ficar parado e dizer, "oups, you got me!" Elucidativo...
Fiquei mais tranquila de saber que, segundo a policia, se estamos preocupados com um active shooting num campus da Califórnia, deveríamos de estar em pânico com a possibilidade de um Hearth Quacke, pois é historicamente bem mais provável de acontecer aqui que o anterior.
De qualquer forma o que aconselham é a saber o que fazer se qualquer das tragédias acontece. E explicaram-nos que os nossos alunos são adultos. E que apesar de sermos líderes se uma situação trágica acontece, temos de os deixar decidir e agir como acharem que devem, tentando não comprometer a segurança dos outros. Tipo, "vamos trancar a sala e esconder-nos sem fazer barulho aqui dentro até a polícia chegar, se algum de vocês quiser fugir é agora".
De todas as vezes que coloquei questões à policia "bati em madeira" parra afugentar o agoiro, e ontem durante o simulacro tive palpitações. Foi útil, mas espero nunca ter de usar estes ensinamentos em lugar algum do mundo.
Entretanto e para quebrar o texto um pouco tétrico, tenho de partilhar que temos visitado sítios incríveis. Conhecemos um amigo de infância do meu sogro, espanhol com muito mundo no corpo, uma cabeça aberta, e com histórias incríveis para contar.
Divertimo-nos tanto com as suas histórias, como com as experiências que nos proporcionou. Preveni os meus filhos 50 vezes para, por favor, não testarem limites de ruído, paciência e educação, (pois temia que um senhor de 86 anos não tolerasse a energia dos meus 3 filhos um dia inteiro). No final do dia, acabei a achar que aos 86 quero ter esta mesma energia e gosto pela vida, com que este querido senhor nos contagiou. Estivemos em Laguna, Newport Beach e Balboa Island. E quando achávamos que o dia tinha acabado, ainda fomos a Dana Point num Rolls-Royce descapotável.
Garanto que foi a primeira vez que o meu ninja de 3 anos entrou em carros desta categoria, mas estava de tal forma delirante que o Carlos lhe ofereceu um Mercedes encarnado de colecção (não faço ideia do modelo), e o Matias adormeceu feliz agarrado ao carro.
Entretanto estamos fãs das 6ªs à noite em Seal Beach. No jardim junto à praia temos ido ao cinema todos, Mel incluída, com cobertores e pipocas. Vemos o filme que nos oferecem todos aninhados uns nos outros, que junto à praia já vai fazendo fresco, e nesse dia descansamos de tanta leitura. O Matias depois das pipocas tem de correr um bocado, mas adora a logística. E nós vamos-lhes lembrando que, apesar de não terem percebido sempre quando nos ríamos durante as piadas do último filme (Oceans Eleven), ninguém reclamou legendas.
Na escola as meninas têm continuado a integrar-se e a superar os desafios que lhes vão aparecendo.
Tenho dito por aqui que esta forma positiva de educar, premiando a atitude, o esforço e a resiliência na aprendizagem é uma forma de educar que aprecio.
Um destes dias, uma mãe professora corrigiu-me. "Não é uma forma... é A Forma. Uma criança reage melhor perante as dificuldades se não tiver o foco na frustração que vai sentir se não atingir o resultado. Nós só temos de os orientar para que os esforços sejam productivos, e que eles sintam que têm controlo sobre o esforço, sobre o trabalho, e que se forem constantes e disciplinados conseguem. Todos conseguem. Com mais ou menos trabalho, e esforço, esse deve ser o foco."
É transversal o positivismo. O Matias sentado a mesa cheira um petisco do jantar e diz com pronúncia nativa: "Great job mom!" Hoje estava a tentar abrir uma tampa, e repetiu umas quantas vezes, "I got it, I got it!"
Vou tirar apontamentos e tentar lembra-lhes isso.
Entretanto, tanta positividade, e a Mercedes chegou a casa tristíssima - "Mamã, hoje os rapazes da minha escola foram super maus para mim."
Estranhámos e ela explicou que - "ontem um, hoje quatro, só queriam que eu me fosse embora, e se não fosse a Abby a proteger-me era ainda mais um as chatear-me!" - Mercedes, tens a certeza que era para te chatear? Se calhar estão apaixonados! as mães dizem que eles te adoram e querem aprender a falar espanhol! embora para onde?? (enfureci a Cuca, que respondeu quase a chorar) - "Eu sei lá!! Embora, para fora! Sei lá!! Não estão nada apaixonados! só diziam que me fosse embora, e mais não sei o quê que não compreendi o que eles dizem, mas que me fosse embora lá para fora, eu tenho a certeza" - e tu o que fizeste?, - "Disse que não!"- e eles?? - "E eles nada! Iam embora!" - Ok! tudo certo! Se dizes que não, e acabou-se a conversa está certo, Mercedes, respeitaram-te e pronto! - "Houve um que me falou no lunch, mas como disse out, eu respondi logo que não, e pronto."
Dia seguinte, encontro a amiga Abby, e aproveitei logo para indagar sobre os rapazes e a Cuca, ela responde:- "You know, boys in our class are quite immature... and I dunno why, everyone is asking Mercedes out!". A Mercedes: - "Viste! Pedem-me para ir embora lá para fora mamã!!!"
Ía-me desmanchando, mas sem grande êxito controlei-me, e expliquei à Mercedes que estava tudo bem, que não era nada lá para fora que os amigos lhes estavam a sugerir que fosse, e que provavelmente até lhe achavam muita graça. A Abby, interveio: "don't worry, I already notified miss Wallace, and she will have a conversation with them about appropriate and unappropriate behaviour, even when you are in love, she said to me!" Agradeci a protecção, e ri-me um bocado com o Rodrigo ao telefone.
Entretanto a Maria foi convidada para integrar uma Troup de Girlscouts. Acedi, e fomos ao primeiro kick off meeting para ficarmos as duas (mãe e filha) a conhecer o que se projecta para os próximos meses, na casa de umas das amigas. Também é suposto sermos hosts de uma das reuniões... Ainda não percebi exactamente a energia que esta actividade nos vai consumir, mas fiquei rendida ao que está preparado. Aguardemos.
Ontem também a Mimi teve uma festa para fundraiser da escola dela. Patinagem, discoteca, e snacks tudo misturado. Professores e alunos tudo de patins.
O Principal também de patins que a conheceu no primeiro dia em que lhe apetecia fugir dali para fora, reconheceu-nos no meio das luzes e musica e veio perguntar-nos o que achávamos da Maria na escola. Respondemos que "so far, so excellent". Ele explicou-nos que quando a viu naquele primeiro dia, pediu pessoalmente a membros do staff que lhe fossem dizendo quando a vissem pela escola, e que os professores lhe dessem feedback. E concluiu, "everyone watching for her in the school says the same - she's always smiling. And well, she's a doll, but you know she's also a teenager. If she's smilling that's a preatty good sign."
Agradecemos, e ele despediu-se a dizer, "Let me know if you feel we can do anything might help her, ok? Have fun!"
Vamos tentar, o mais possível agora e sempre!
E se não, teremos sempre os abacates e os maracujás.